Já ouviu falar de enurese infantil?
A enurese infantil, popularmente conhecida como “fazer xixi na cama”, é uma problemática comum na infância que afeta o controle da micção, principalmente durante o sono. Embora seja frequentemente considerada uma fase passageira do desenvolvimento infantil, a enurese pode trazer consequências emocionais significativas tanto para a criança quanto para a família.
Estima-se que cerca de 15% das crianças de 5 anos apresentam episódios de enurese, sendo mais comum em meninos do que em meninas.
O que é Enurese Infantil?
É a perda involuntária de urina durante o sono em crianças com idade igual ou superior a 5 anos — idade em que a maioria já deveria ter adquirido o controle esfincteriano noturno. Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, através do DSM-5, a enurese é diagnosticada quando ocorrem episódios pelo menos duas vezes por semana por um período mínimo de três meses consecutivos, ou quando há impacto clínico significativo no funcionamento social, escolar ou emocional da criança.
Tipos de Enurese
A enurese infantil pode ser classificada de acordo com a frequência e com a presença ou ausência de períodos de continência. Os principais tipos são:
1. Enurese primária
Quando a criança nunca conseguiu controlar a função urinária durante a noite. É o tipo mais comum e geralmente está associado a fatores hereditários ou ao atraso no amadurecimento do sistema nervoso.
2. Enurese secundária
Quando a criança já tinha controlo da bexiga durante a noite, durante 6 meses, mas depois voltou a urinar na cama. Essa forma geralmente está ligada a fatores emocionais, como mudanças na rotina familiar (p.e: divórcio dos pais ou nascimento de irmãos) ou eventos traumáticos.
3. Enurese monossintomática
É caracterizada pela ausência de outros sintomas urinários, como urgência miccional, dor ao urinar ou perdas durante o dia. Indica um quadro mais leve e frequentemente relacionado ao sono profundo.
4. Enurese não-monossintomática
A criança apresenta outros sintomas urinários, como micções frequentes, incontinência diurna ou infecções urinárias recorrentes. Esses casos podem indicar uma disfunção vesical mais complexa e requerem avaliação urológica mais aprofundada.
Causas da Enurese Infantil
1. Imaturidade neurológica
Algumas crianças apresentam atraso na maturação do controle dos esfíncteres e no desenvolvimento da comunicação entre o cérebro e a bexiga.
2. Fatores genéticos
Estudos mostram que filhos de pais que tiveram enurese infantil têm maior chance de também apresentarem o quadro.
3. Produção excessiva de urina à noite (poliúria noturna)
Em algumas crianças, a produção do hormônio antidiurético (ADH), que reduz a produção de urina durante a noite, está diminuída.
4. Sono profundo
Crianças com sono muito profundo podem não perceber o sinal de bexiga cheia e, portanto, não acordam para ir à casa de banho.
5. Problemas emocionais ou psicológicos
Situações de stress, ansiedade, traumas, mudanças escolares ou familiares podem desencadear ou agravar a enurese.
6. Infecções urinárias ou malformações anatômicas
Apesar de menos comuns, condições orgânicas como infecção do trato urinário, refluxo vesicoureteral ou bexiga neurogénica podem estar presentes, principalmente nos casos de enurese secundária ou não-monossintomática.
Diagnóstico
O diagnóstico da enurese infantil é predominantemente clínico, baseado na história médica, comportamental e familiar da criança. Durante a consulta pediátrica, é fundamental levantar informações sobre:
- Frequência e padrão dos episódios de enurese
- Funcionamento intestinal (prisão de ventre pode estar associada)
- História familiar
- Alterações comportamentais recentes
- Hábitos miccionais e alimentares
Além disso, o pediatra pode solicitar exames complementares, como:
- Exame de urina (para descartar infecções)
- Ultrassonografia do trato urinário (em casos com suspeita de anomalias)
- Avaliação urodinâmica (em casos complexos)
Tratamento
O tratamento da enurese deve ser individualizado e considerar tanto os aspectos físicos quanto os emocionais da criança. O acompanhamento multidisciplinar, com pediatra, psicólogo, fisioterapeuta pélvico e, em alguns casos, urologista, é recomendado. Abaixo estão as abordagens mais comuns:
1. Medidas comportamentais
a) Educação e motivação:
É essencial evitar castigos e discussões. A criança deve ser incluída no tratamento de forma positiva, com estímulo à autoestima e ao autocuidado.
b) Reforço positivo:
Pode-se utilizar um quadro de adesivos ou recompensas simbólicas para cada noite em que o objetivo é cumprido.
c) Redução de ingestão de líquidos à noite:
Evitar o consumo excessivo de líquidos nas horas antes de dormir ajuda a diminuir o volume de urina durante a noite.
d) Estímulo à micção antes de dormir:
Garantir que a criança vai à casa de banho antes de deitar é uma medida simples e eficaz, que diminui a probabilidade de “xixi na cama”.
2. Uso do alarme de enurese
É um dispositivo que emite som ou vibração ao detetar urina e é considerado o tratamento mais eficaz para a enurese primária. Com o tempo, a criança aprende a acordar com o sinal da bexiga cheia.
3. Tratamento medicamentoso
Quando as medidas comportamentais e o alarme não são suficientes, o profissional de saúde adequado poderá recomendar tratamento medicamentoso, durante um período de tempo limitado.
4. Acompanhamento psicológico
Em casos em que há forte componente emocional ou situações de trauma, a psicoterapia pode ser extremamente útil. O apoio à família também é fundamental para garantir um ambiente acolhedor e sem julgamentos.
Impacto Emocional e Social
A enurese pode ter consequências significativas na autoestima e no bem-estar emocional da criança. Muitas vezes, pode sentir-se envergonhada, constrangida ou inferior aos colegas, podendo gerar:
- Baixa autoestima
- Ansiedade
- Distanciamento de atividades sociais (p.e: dormir na casa de amigos ou acampamentos)
- Problemas de relacionamento com os pais ou irmãos
Por isso, o acolhimento da família e o suporte psicológico são tão importantes quanto o tratamento médico. Os pais devem ser orientados a agir com empatia, evitando comparações e críticas.
Prevenção e Prognóstico
Não há uma forma comprovada de prevenir a enurese, mas alguns cuidados podem ajudar a reduzir os riscos ou a gravidade do quadro:
- Estimular bons hábitos miccionais desde cedo
- Controlar o consumo de líquidos no período noturno
- Tratar a obstipação intestinal
- Promover um ambiente emocionalmente seguro e estável
O prognóstico da enurese infantil é, na maioria dos casos, muito positivo. Com o tratamento adequado, a maioria supera o problema até a adolescência.
Considerações Finais
A enurese infantil é uma condição comum, mas frequentemente acompanhada por mitos, tabus e julgamentos. É fundamental entender que urinar na cama não é culpa da criança e que, na grande maioria dos casos, não representa um problema grave de saúde. A compreensão, o apoio emocional e o tratamento adequado são essenciais para a superação desse desafio.
Pais, educadores e profissionais de saúde devem trabalhar em conjunto para garantir que a criança recebe a ajuda de que precisa. Através de um olhar atento e empático, é possível transformar esse processo numa oportunidade de fortalecimento da autoestima e do vínculo familiar.
Referências:
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